Vou aproveitar o gancho de uma amiga que escreveu sobre cegueira pra narrar uma pequena pérola do cotidiano. Fim de expediente e a esplanada cheia, como sempre. Os carros parecendo animais fugindo do apocalipse. Dentro de cada um deles um par de olhos entre assustados e absortos; e o ar tão seco que o suor provocado pelo acúmulo de gente no ônibus me alivia um pouco. Como sempre, eu nunca consigo ir sentado até a rodoviária, pois o ônibus já vem lotado. De qualquer forma, se por um lado é um saco ir em pé, por outro consigo me divertir escutando conversas alheias e imaginando o pensamento das pessoas.
Do meu lado, sentados, vão dois cegos do tipo “tradicional”, bengala dobrável na mão e o olhar de quem está pensando ou lembrando, ligeiramente voltado pra cima. Fico por ali (até mesmo porque não tenho, no ônibus, muito lugar pra onde ir) e “grampeio”, sem autorização, a conversa dos dois que, aparentemente, falavam sobre algum concurso.
— Matemática financeira tá no edital.
— É, eu vi.
— Lógica também.
— É, eu vi isso também.
Obviamente, fiquei surpreso com aquele diálogo repleto de referências visuais. Quase me escapou na hora um “como assim, ‘eu vi’; cê né cego, cara?!”, mas fiquei calado, o que me possibilitou fechar minha incursão pela vida alheia com chave de ouro, nos seguintes termos:
— É, não sei se da nossa sala passa muita gente — continuou o primeiro cego.
O outro olha pra cima, como se observasse um anjo, e completa:
— É...pra mim, só vai passar a gordinha do cachorro branco...
Chego na rodoviária, os dois descem e eu fico no ônibus. Concluo, sem muita pieguice ou correção política, que os cegos vêem, ao contrário de mim que, até aquele dia, não tinha visto nenhum...
Do meu lado, sentados, vão dois cegos do tipo “tradicional”, bengala dobrável na mão e o olhar de quem está pensando ou lembrando, ligeiramente voltado pra cima. Fico por ali (até mesmo porque não tenho, no ônibus, muito lugar pra onde ir) e “grampeio”, sem autorização, a conversa dos dois que, aparentemente, falavam sobre algum concurso.
— Matemática financeira tá no edital.
— É, eu vi.
— Lógica também.
— É, eu vi isso também.
Obviamente, fiquei surpreso com aquele diálogo repleto de referências visuais. Quase me escapou na hora um “como assim, ‘eu vi’; cê né cego, cara?!”, mas fiquei calado, o que me possibilitou fechar minha incursão pela vida alheia com chave de ouro, nos seguintes termos:
— É, não sei se da nossa sala passa muita gente — continuou o primeiro cego.
O outro olha pra cima, como se observasse um anjo, e completa:
— É...pra mim, só vai passar a gordinha do cachorro branco...
Chego na rodoviária, os dois descem e eu fico no ônibus. Concluo, sem muita pieguice ou correção política, que os cegos vêem, ao contrário de mim que, até aquele dia, não tinha visto nenhum...
4 comentários:
É...o pior cego é aquele que não quer ver..., não é o caso de nenhum desses dois rsrsr!
e isso é o que mais me agrada nos deficientes visuais: eles vêem além do que está externado...
Esse povo tinha que tá no livro do Saramago...
Endosso seu amigo Jean.. o pior cego é aquele que não quer ver!! esse comentario pertinente mostra o quanto eles veem mais alem do que realmente aparenta!
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