quarta-feira, 29 de outubro de 2008

CONTRATA-SE

Estava na rua hoje de manhã, quando vi um cartaz: “Contrata-se motoqueiro com perfil de vendedor”. Pensei em algumas combinações também inusitadas e montei esse pequeno texto. Espero que gostem.

CONTRATA-SE

Motoqueiro com perfil de vendedor;
Garçom com “manha” de ilusionista;
Manicure com passado de artista;
Manequim com ombros de remador.

Astronauta com “feeling” de escritor;
Redator com humor de operário;
Jagunço com voz de bibliotecário;
Pai-de-Santo com braço de estivador.

Pipoqueiro com treino de encanador;
Caçador com “vista” de bordadeira;
Alfaiate com cheiro de quitandeira;
Costureira com alma de pescador.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Rendas Pretas Defunteiras

Assim, feito no Paredão. Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz; não é no efeito que dão. O senhor ouvindo seguinte. Me entende. O Paredão existe lá, Senhor vá, senhor veja. É um arraial. Hoje ninguém mora mais. As casas vazias. Tem até sobrado. Deu capim no telhado da igreja, a gente escuta a qualquer entrar o borbolo rasgado dos morcegos. Bicho que guarda muitos frios no corpo. Boi vem do campo, se esfrega naquelas paredes. Deitam. Malham. De noitinha, os morcegos pegam a recobrir os bois com lencinhos pretos. Rendas pretas defunteiras. Quando se dá um tiro, os cachorros latem, forte tempo. Em roda a parte é desse jeito. Mas aqueles cachorros hoje são do mato, têm de caçar seu de-comer. Cachorros que já lamberam muito sangue. Mesmo, o espaço é tão calado, que ali passa o sussurro de meia-noite às nove horas. Escutei um barulho. Tocha de carnaúba estava alumiando. Não tinha ninguém restado. Só vi um papagaio manso falante, que esbagaçava com o bico algum trem. Esse, vez em quando, para dormir ali voltava? E eu não revi Diadorim. Aquele arraial tem um arruado só: é a rua da guerra... O demônio na rua, no meio do redemunho... O senhor não me pergunte nada. Coisas dessas não se perguntam bem.
Grande Sertão: Veredas

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Torre de Névoa

Subi ao alto, à minha Torre esguia,
Feita de fumo, névoas e luar,
E pus-me, comovida, a conversar
Com os poetas mortos, todo o dia.

Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
Dos versos que são meus, do meu sonhar.
E todos os poetas, a chorar,
Responderam-me então: "Que fantasia,

Criança doida e crente! Nós também
Tivemos ilusões, como ninguém,
E tudo nos fugiu, tudo morreu!..."

Calaram-se os poetas, tristemente...
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao céu"!...

Florbela Espanca

domingo, 14 de setembro de 2008

Sobre um Chamado Aleixo

Segue um trecho de Grande Sertão: Veredas, de Rosa. Culpas e castigos nas lembranças de Riobaldo, meu filósofo preferido. Espero que apreciem.
"Mas, em verdade, filho, também, abranda. Olhe: um chamado Aleixo, residente a légua do Passo do Pubo, no da-Areia, era o homem de maiores ruindades calmas que já se viu. Me agradou que perto da casa dele tinha um açudinho, entre as palmeiras, com traíras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, que receberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas, elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelhavam ser peixes ensinados. Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide - tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta... Eh, pois, empós, o resto o senhor prove: vem o pão, vem a mão, vem o são, vem o cão. Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aqueles eram o amor dele, todo, despropósito. Dê bem, que não nem um ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meninos do Aleixo aí adoeceram. Andaço de sarampão, se disse, mas complicado; eles nunca saravam. Quando, então, sararam. Mas os olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga à rebelde; e susseguinte - o que não sei é se foram todos duma vez, ou um logo e logo outro e outro - eles restaram cegos. Cegos, sem remissão dum favinho de luz dessa nossa! O senhor imagine: uma escadinha três meninos e uma menina - todos cegados. Sem remediável. O Aleixo não perdeu o juízo; mas mudou: ah, demudou completo - agora vive da banda de Deus, suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite e do dia. Parece até que ficou o feliz, que antes não era. Ele mesmo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter pena dele, transformar para lá o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me deu raiva. Razão das crianças. Se sendo castigo, que culpa das hajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!"
Como esse blog não tem receita, vez por outra algumas coisas assim vão aparecer...

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Aquecimento Global x Resfriamento Regional.

Considerando que na democracia todo mundo guarda pra si o direito sagrado de dizer o que pensa, mesmo quando o assunto é sério e exige conhecimento abalizado, resolvi escrever algumas linhas sobre o tão famigerado “aquecimento global”, apresentando ao mundo da ciência, ao qual sou tão afeito quanto o diabo é à cruz uma tese revolucionária acerca do tema, que eu mesmo nomeei de “aquecimento global com resfriamento regional”. Obviamente, antes das perguntas técnicas relacionadas ao desenvolvimento da referida teoria, viriam as perguntas curriculares, começando com a famosa “Quem é esse cara?” Já antecipo a resposta pra não perdemos tempo com banalidades pouco aproveitáveis: ninguém. Isso mesmo, nunca fui pesquisador da Nasa, nem consultor da WWF, ou sequer fotógrafo de tubarão da Nacional Geographic Explorer. Fato é que meu currículo pra falar sobre o tema é curto como coice de porco, o que em momento algum me intimida. De fato, minha “bruteza” deve ser encarada como perspectiva desapegada das limitações que o excesso de fundamentação teórica causa ao pesquisador. A pesquisa livre também tem seu valor, e é isso que esse pequenino texto pretende demonstrar.
Bom, após profunda reflexão, constatei que os que escrevem sobre o aquecimento global ainda não sabem nada além dos efeitos do referido fenômeno, quais sejam, a elevação da temperatura média do planeta e os possíveis impactos decorrentes. Além disso, não têm nada além de conjecturas acerca de suas causas. Por isso, resolvi apostar em uma proposta também, tão cientificamente embasada quanto as demais. Minha tese consiste em reconhecer um possível aquecimento global, mas com resfriamentos regionais localizados. Vou explicar isso.
É que, se o aquecimento global tem como causa a mudança de configurações na estrutura do planeta, por conta ou não de interferência humana, a energia térmica que incide sobre o globo continua sendo, em tese, e descontadas as variações nas atividades solares, basicamente a mesma, donde se conclui que, para que o globo se aqueça de forma inteira, é necessário que algumas partes se aqueçam menos do que se aqueciam até então. Simples? É sim, obrigado.
E praqueles que alegam que a questão não é a energia térmica que entra, mas o fato do efeito estufa não deixar ela sair facilmente, respondo com uma pergunta: se ela encontra tanta dificuldade assim pra sair, porque entra tão fácil? Te peguei no contrapé, né!?
Em suma, minha teoria é a seguinte: quando a média das temperaturas subir pra comprovar a tese dos defensores do “aquecimento global”, a média da temperatura de um monte de regiões vai diminuir pra gerar esse equilíbrio, e alguém vai estar lá pra documentar o fato e dizer que eu também tava certo.
No fim ciência é isso mesmo, metodologia e loucura. Uma me falta, outra me sobra...

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Cegos

Vou aproveitar o gancho de uma amiga que escreveu sobre cegueira pra narrar uma pequena pérola do cotidiano. Fim de expediente e a esplanada cheia, como sempre. Os carros parecendo animais fugindo do apocalipse. Dentro de cada um deles um par de olhos entre assustados e absortos; e o ar tão seco que o suor provocado pelo acúmulo de gente no ônibus me alivia um pouco. Como sempre, eu nunca consigo ir sentado até a rodoviária, pois o ônibus já vem lotado. De qualquer forma, se por um lado é um saco ir em pé, por outro consigo me divertir escutando conversas alheias e imaginando o pensamento das pessoas.
Do meu lado, sentados, vão dois cegos do tipo “tradicional”, bengala dobrável na mão e o olhar de quem está pensando ou lembrando, ligeiramente voltado pra cima. Fico por ali (até mesmo porque não tenho, no ônibus, muito lugar pra onde ir) e “grampeio”, sem autorização, a conversa dos dois que, aparentemente, falavam sobre algum concurso.
— Matemática financeira tá no edital.
— É, eu vi.
— Lógica também.
— É, eu vi isso também.
Obviamente, fiquei surpreso com aquele diálogo repleto de referências visuais. Quase me escapou na hora um “como assim, ‘eu vi’; cê né cego, cara?!”, mas fiquei calado, o que me possibilitou fechar minha incursão pela vida alheia com chave de ouro, nos seguintes termos:
— É, não sei se da nossa sala passa muita gente — continuou o primeiro cego.
O outro olha pra cima, como se observasse um anjo, e completa:
— É...pra mim, só vai passar a gordinha do cachorro branco...
Chego na rodoviária, os dois descem e eu fico no ônibus. Concluo, sem muita pieguice ou correção política, que os cegos vêem, ao contrário de mim que, até aquele dia, não tinha visto nenhum...

sábado, 30 de agosto de 2008

Até 10 é acidente, não desastre....

Minha mãe me informa, vez ou outra (em nossas conversas telefônicas ou quando apareço por lá), das colisões automobilísticas ocorridas nas ruas da minha terra, e sempre começa com a mesma frase: "Ficou sabendo do desastre?" Nas primeiras vezes eu fiquei pensando nas dezenas de mortos e feridos, até que percebi que o termo desastre significava, no caso, qualquer colisão de veículo na qual houvesse, pelo menos, uma morte.
Não sei de onde surgiu esse hábito de informar sobre os acidentes de carro e demais dilemas do mundo cotidiano (assassinatos bárbaros, escândalos envolvendo pessoas conhecidas, etc.), mas acabei me acostumando com essa forma peculiar de diálogo. Só não me adaptei com a palavra "desastre". Não me parecia adequada.... Um dia, na intenção de convencer minha mãe a mudar para "acidente", inventei uma regra: "Mãe, até 10 mortes é acidente, acima de 10 mortes que é desastre...".
Ela parece não dar muita importância. Sempre que eu vou pra casa, ligo avisando, e o diálogo é mais ou menos assim:
--- Cuidado perto da ponte, essa semana teve outro desastre lá.
--- Mãe, morreram quantos?
--- Dois, marido e mulher.
--- Então não é desastre, mãe, é acidente.
--- Tá bom, mesmo assim, cuidado...
Pra completar, há um tempo atrás um ônibus bateu numa ponte e caiu no rio, não sei em qual cidade. Por óbvio, o tema surge numa conversa pouco tempo depois:
--- Ficou sabendo do desastre? --- e antes que eu fale algo ela completa, com um ar vago de quem teria um "ás" na manga --- do ônibus que caiu no rio?
Na hora eu penso na "regra" e imagino o número de mortos; uma tragédia. Olho pra ela como o adversário derrotado cumprimentando seu algoz. Fui batido no meu próprio jogo de palavras.
--- Fiquei sim, mãe...